sexta-feira, maio 27, 2011

Nesse mar de águas povoadas de silêncio hoje gravei memórias tingidas de alcatrão

(imagem de Duy Huynh)

Quando as estradas da Vida parecerem escassas, os telhados estiverem sem o ser e a chuva miudinha e sem rumo na tua Vida quiser entrar: abre as mãos e embala-a com cuidado. Ainda que não saibas do que dela possa advir, recebe-a como um pedaço de fina cambraia, ainda que desfiado, trará um rasgo para o teu ser.
Não temas porque temer é não viver. Quem não vive: recalca, prende, amarra. E as amarras do barco impedem-te de velejar ainda que o teu sonho tivesse sido navegar, velejarás na liberdade do que te é permitido.
Que nada te aborreça, que nunca pessoa alguma te perturbe, isso significa mal querer. Agarres os gestos que a Vida mostra, ainda que não os sintas na ânsia do agarrar. Liberta-te, devagar como uma gaivota de asas semicerradas que em terra veio parar. Liberta-te do mau sentir e veleja nos escombros, nos recônditos do teu Sentir, com a mente desperta: concentra o teu Sentir. Indulgentes são os desejos: afasta-os desse rio que avistas e trata todos e o mero passante com a fome de Ser humano, com a sede de um quase deus: sabendo que nunca poderás ser rei numa terra onde só tu habitas.
Mas tenta: governa-te e faz-te rei de ti, primeiro. Depois aparecem os outros, alguns nada te dirão, outros na tua palma ficarão como nomes tatuados desde que nasceste e ainda que nunca o soubesses, sempre estiveram e continuam lá.
O Amor? Esse não existe. Existe a compaixão, existem oceanos de bem-querer e quem sabe num deles, o rio que tanto avistas já em ti.

Diz-me: porque deixaste que a amargura nada mais fosse do que lodo em ti? A Amargura é um degrau na escala dos que buscam ou encontram algo maior: saber. Sejas sábio de ti próprio e saibas quanta água um rio leva e a que te basta.

domingo, maio 01, 2011

Esqueceste o coração e concentraste-te no chão de pedra. Onde começa um, acaba o outro.

“Então, não te esqueças de que a noite pode ser a tua última hipótese de sobrevivência, sobretudo se a névoa começar a subir dos passeios…” in Carta, As coisas mais simples, Nuno Júdice

Enquanto caminhavas num chão de pedra, ordenei ao sono que se cruzasse contigo. Ofertei-te um leito de fetos mansos para que repousasses a solidão. Mandei todos os rios para uma outra margem do mundo que poucos sabem que existe. Apaguei-te o fogo das lágrimas e num instante todas as pétalas caíram. Despetalei uma a uma, todas as flores em Maio, menos as Rosas. Crescem em abundância nos caminhos que te cercam, os espinhos já não te ferem e no teu coração há uma única certeza: este chão de pedra fez de ti, Mulher.
Chamo-me Tempo (nunca gostaste de mim: sei bem) e nunca te abandonei, nem nos dias em que a chuva parecia não te molhar, mesmo quando choravas e o caudal dos rios aumentava. Sei que esquecias a fome e a sede.
Trazes um deus no peito e não sabes!
Enquanto caminhavas num chão de pedra, sete anjos velavam pelos teus dias e pelas tuas noites e nos dias em que a amargura te visitava, fazendo-te uma condenada, enviei um cão para seguir os teus passos, como se sentisse a tua solidão falavas-lhe, com carinho, como quem acaricia uma Alma cansada. As noites eram frias, tão frias que nenhuma palavra existe para as descrever mas sei, sei bem que esse chão de pedra que pisaste e hoje olhas como um estrado de relva aos teus pés, nada mais foi do que um sono que te cerrou os olhos e impediu de sentir. E tudo porque julgavas já ter visto uma noite longa, a maior. Enganaste-te. E foi nesse engano que todos os dias e noites se tornaram iguais. Choraste. Choraste tempos que o Tempo não conta. Mas hoje, quando acordaste, pela manhã, todos os rios tinham parado e os oceanos congelado para que lhes pudesses devolver o sono (esse outro nome da cegueira) e sentir que talvez tragas um deus no peito mas não o sabes, ainda…

Tempo: como se dissesse rio…