quinta-feira, abril 22, 2010

ANJO NO VALE

“O caminho que desce e o caminho que sobe são os mesmos.” Heráclito

Tu és como um vale: onde o sol se inclina.
Como um lençol de noiva: onde a noite se deita.
És um lírio na memória
de um beijo que não pode existir: semente
que não germinou mas abraça a Terra.
És um raio de trovão numa noite
escura, densa e opaca.
E és tudo o que não sei dizer.
Porque não sei quem te fez
do tamanho do mar.
Persegue-me a pergunta: “Quem fez de ti a Terra que procuro?”
“Quem fez de ti a Terra que procuro?”

quarta-feira, abril 21, 2010

QUASE


“E por vezes as noites duram meses e por vezes os meses oceanos.” David Mourão-Ferreira
Aos que a vida amargura,

Há um mundo a dois passos deste onde quase se sente paz.
Ela foge como quem foge do que assusta, mesmo sem ter medo. Foge da amargura que a fez crescer. Deste nevoeiro que não se dissipa. Ao longe a praia (quase a vê) e, mesmo no Inverno, todos os outros lhe parecem veraneantes, o mar deles é sempre tão azul e perfeito, parecem sorrir (quase os ouve).
E ela uma sombra: uma criatura na sombra, apenas. Uma criatura perdida e tão longe do mundo que quase observa. Uma desconhecida.
No seio de um lugar abraçado por um pântano, sem luz, sem sol, sem calor. Tão fria a Alma. Tão sentido o Tempo. Quando o medo vem morar, lado a lado, neste mundo (de poeiras) que a cerca, o Tempo deixa de ser uma convenção. O Tempo, apenas, existe quando está em fuga: as lembranças que doem, as feridas abertas, um sangue que não corre. O Tempo é filho da amargura. Talvez seja parente do frio, também.
Não saber quem pintou o Sol. Não saber quem abandona uma pintura assim. Talvez viver seja assim, também: aceitar que o Tempo existe. Talvez.

Talvez amanhã o Tempo esteja em fuga. Talvez o pântano desapareça e as estrelas não adormeçam e o dia nunca acabe. Talvez.

terça-feira, abril 13, 2010

SOL ETERNO NO MAR

“Como se fosse possível matar o tempo sem ferir a eternidade.”
Henry David Thoreau

Quem pendurou a Lua no céu? Quem colocou as flores em água? Quem?
Terão sido as mesmas mãos que cavaram uma sepultura?
Ninguém sabe e a esta hora o poeta dorme. Deixem-no repousar: à noite o mar não se vê. E ninguém acredita que haja uma nuvem sobre a taça que ofertaste, um dia, a alguém (que tornaste imortal), embrulhada numa folha de Outono que o mesmo mar que à noite não vês te ofereceu. Como quem oferece o que de melhor há em si.
Amanhã fixa os olhos no Sol, sem medo. Levanta-te cedo. Bem cedo. O mar que ontem não viste: está lá. Sempre esteve.
Hoje dorme de olhos abertos e voltados para o Céu, como Endíminon, e talvez Selene faça parar a noite e se encante com um olhar teu. Talvez.
Talvez o mar não tenha ondas e me possas avistar: sou uma simples folha de Outono, imperfeita, que navega em amplo mar – onde o silêncio é maior. Tão grande como o mar.
Talvez a folha te diga quem pendurou a Lua no céu e quem colocou as flores em água.
Que importa se foram as mesmas mãos que cavaram uma sepultura?

segunda-feira, abril 12, 2010

O ABRIGO

“E eu sou mais do que te invento
Tu és um mundo com mundos por dentro…A tua sombra é o lugar onde me deito.”
Fazer o Que Ainda Não Foi Feito, Pedro Abrunhosa

O tronco que parte e quase se divide em dois pode não ter beleza para o vulgo olhar mas tu sabes que esse tronco, mesmo partido, quase dividido, te albergará sempre.
Os ramos da árvore podem ter morrido porque os regaste, demais, com as tuas lágrimas mas a esperança, o verde, que te cerca guarda em ti uma primavera.
O barco que te leva pelo mundo pode ser tão pequeno como um detalhe, quase sem o ser, mas tu cabes nesse barco de velas quase tão finas como os dedos de uma mulher.
Tu sabes as cores do mundo, já conheceste o Amor.
Um dia também tu podes ser verde e mesmo que pareças um tronco partido lembra-te: podes ser o abrigo de alguém – ainda que o barco seja pequeno, o mar é infinito.

sexta-feira, abril 09, 2010

TERRA DOS POBRES

(Imagem de Bruno Silva- Olhares)
"Eu nunca fui rei
Nem quero ser;
Mas quando sinto que adormeces
Na palma da minha mão
Imagino
Que sou um Czar da Rússia,
Um Xá da Pérsia."
Nizar Qabbani

As pedras levantaram-se. Ergueram-se, como corpos à procura de sol, e nesses bocados de escuridão a voz perguntava: “Quem és? Quanto és?”
- “O Vento diz-me rei. A Lua chama-me amante. Piso a Terra molhada e sinto-me rei. Gosto de ser rei quando piso a Terra com água, quando sei que ali estás em cada pedaço de lágrima vertida. Não me sinto amante: mentes, Lua – amaldiçoo-te, terás muitas fases.
Faço-me dono da Lua, vizinho do Vento. Caminhante num deserto de ausências.
Sou uma voz maior que as constelações que guardas no peito. Sou um veleiro – talvez. Um veleiro imperfeito. Pequeno. Simples. Frágil: demasiado.”
As pedras levantaram-se. E no verso das lápides lia-se: “Nunca saberás quem és. Quanto és: nunca mostres.”
E hoje não sei quem sou. Escrevo. Escrevo nas novas lápides, apenas: quanto sou.
Apago as vozes que me perguntam “Quem és? Quanto és?” com a ajuda do Vento, da Terra molhada, das Luas e dos desertos que nos habitam: (humanos).
Esqueci quem sou.
Habita-me intensidade: tanta. Infinita. E ser assim basta. Que importa ser rei?