segunda-feira, janeiro 31, 2011

As gaivotas que vejo, agora, devagar


Fecho os olhos e não vejo o teu sorriso. Porém, na
memória, um odor a maçãs e outros cisnes”. POEMA PARA PESAR MAÇÃS
JOÃO PEDRO DA COSTA

Às vezes vejo uma gaivota e não a reconheço ao longe pelas asas porque as traz tão semicerradas.
Quem semicerrou as asas da gaivota?
Vejo-a como se despertasse do mundo dos mortos com olhos que não foram feitos para ver.
Às vezes vejo uma gaivota e não a reconheço ao perto pelo voo porque o voo afasta-se da Terra e vai para o outro lado do lado do mar. E eu não sei se o mar existe.
Vejo a gaivota de asas semicerradas, ao longe. Vejo a gaivota cujo voo não reconheço ao perto. E agora, só agora sei que vejo as coisas, todas elas, devagar.
Às vezes, quando despertamos de entre os mortos, um simples aceno nos parece uma gaivota ainda que ao longe tenha as asas semicerradas e ao perto pareça não voar.
Será uma gaivota? Terei despertado de entre os mortos?
Apenas sei que vejo as coisas devagar.

terça-feira, janeiro 25, 2011

Um pedaço de pele serve de céu ao meu coração

Hoje roubei todas as rosas dos jardins e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.” Eugénio de Andrade
Se a morte chegasse ao pé de mim e dissesse que para sempre terminaria o meu diálogo com a vida, eu desejaria ouvir-te dizer:”Não digas nada”. E na brevidade que me fosse permitida, voltaria atrás, como quem recua num tempo sem tempo, e anularia todas as perguntas. Porque eu não preciso de saber mais nada. E nesta escuridão, já perto da morte, um pedaço de pele serve de céu ao meu coração.
Desafio-te morte, dizendo: “Os amantes não deviam ser humanos, deviam ser corações aduncos e com asas, sem jamais ser aves. Porque as aves não nasceram para voar. Nalguns humanos, poucos, quase raros, quem voa é o coração.”
E hoje fico nesta casa branca onde só há ausência e sem medo da morte, calo as palavras com um beijo. Há beijos que a morte não mata.

segunda-feira, janeiro 03, 2011

Como uma tentação

"Não nos deixar cair em tentação, é o mesmo que dizer: Não nos deixar ver quem realmente somos". Arthur Schopenhauer

Frio. Sombra. Rio. Quase um poema que não leste. Quase uma boca que desconheceste (não foram os beijos que não eternizaste e ficarão, sempre, por partilhar, são as palavras que calaste, os sons que ficarão, sempre, por dizer); quase um rosto que não vês (olhos da mesma viagem que os teus, lábios famintos de pão, pálpebras de nostalgia); quase duas mãos entrelaçadas nas, duas, tuas (o carinho que se escapou dos teus dedos, os afectos de seda em mãos de veludo); quase um ser humano ao teu lado (olhos, boca, rosto, lábios, mãos e tudo o que nunca viste porque nunca olhaste).
Frio. Sombra. Rio. Quase um poema que ficou por dizer. Quantas palavras não são beijos e quantos beijos ficam sem som porque a Alma não eterniza e o corpo rejeita? Quantos ecos se perdem numa paisagem que não é frio, nem sombra porque nenhum rio existe?
Quantos nas mãos de um destino, cego e pálido, caminham como se apenas houvesse frio, sombra e um rio – que não existe? Nada existe. Nada. Nada mesmo. Existe, apenas, um pedaço de céu, um espelho, de mim, nos olhos do outro; existe uma névoa que quase parece sombra (sem o ser); existe uma margem de um rio que para outros não existe. E existe frio. Existe muito frio quando o olhar não te alcança, e as mãos não te tocam como um poema que quis ler mas a sombra, o frio e o rio (que pensei existir) não deixaram.
Do outro lado, de algum lado ou de lado nenhum, um pano cai e o acto acontece como um poema que não leste. Como um poema que ficou por dizer… Queda-se a noite e os sonhos que não leste no poema que quase existiu, voltarão como uma tentação disfarçada de frio e sombra num rio que apenas tu vês, quando nada existe. Porque todas as tentações são frio e sombra das coisas que um rio guarda.