terça-feira, novembro 22, 2011

País sem Noite (?)

Anselme Boix Vives

“mais importante do que ter o Sol é poder sair da noite e ir ao seu encontro, e mais e melhor do que esse encontro é poder inventá-la, dizer que ela nunca tenha existido.” Curador Cadete, in “O meu mundo não é deste reino”, João de Melo


Atravesso as fronteiras que separam homens vestidos de Lua e mulheres vestidas de Sol e já são poucos e poucas, os homens, as mulheres e as fronteiras! A Lua e o Sol existem. Invento-me na lentidão opaca de um mundo frio, na ânsia de o aquecer.
Sair deste mundo com dois limões suculentos em busca de noites iguais às que trazemos no interior e assistir nos olhares dos outros a noites mais longas do que as nossas, faz-nos crescer.
Depois de emudecidos os lábios não sangram. Depois de silenciadas as dores das palavras, crescem videiras de afetos, mas depois da paragem de pequenos gestos na sombra da existência, cresce lodo como pântano escorregadio e argiloso.
Ninguém sabe o que custa a ausência de palavras ao poeta, exceto o mesmo.
Almas descruzam-se nos olhares das florestas, como desfiladeiros em busca do não visto. Os óleos de Argão, puros e exclusivos destilam nas veias dos pintores e dos poetas como essência absoluta de um mundo que não se quer perdido.


Quanto custa viver? De que soma se faz uma vida? Quantas subtrações são necessárias para fazer da aridez da noite, prolongada, pela cegueira interior, um lugar de luz, ainda que diminuta e reduzida? Quantas?

sexta-feira, novembro 18, 2011

Se uma palavra faltar, abraça-me.


A totalidade, o absoluto – essência – do Existir da pessoa, doa-se na íntegra, apenas a quem ama, na essência do Amor.

Para ti: Avô, para que a Alma cicatrize as feridas: força.



Um dia acordei e o dia não queria morrer. Senti vida na vida. Soube, então, que nenhuma montanha me impede de ser quem sou ou estar onde estou. E vi passos como os meus; chorei quando a minha vontade era abraçá-los mas os braços amputados, que trazia no interior da extensão das mãos às omoplatas mostraram-me que há abraços dados sem braços e beijos sem lábios. E hoje, caminho com mais vontade porque ninguém, nada, nunca pode amputar o que sou ou o que sinto.




Tudo o resto são cestos de limões secos.

domingo, novembro 13, 2011

A COR DA MORTE

“Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo.” Sophia de Mello Breyner Andresen


Certo dia. Um qualquer. Indefinido.
A cor da Morte. Vesti-la como se vivesse connosco desde o nascimento. Olhá-la de frente, como a bengala do caminheiro, como a bússola em ritmo de compasso final, olhá-la como se olha tudo o que não existe, na incerteza, na ausência, na dúvida do que pode ser. Senti-la como algo que acontece, tão-somente, aos outros.
A Morte. A Morte veste-se de neutro, não pede culpas. Deixa um rasto escuro como se das trevas que escondem Lilith, se tratasse. Talvez a Morte seja uma estrada opaca, densa e sombria ou talvez não seja nada. A Morte fecha a verdade: todos os olhos cerrados, sem vida, incapazes de dar resposta; emudece a boca na interdição do dizer. Ao longe avista-se num mar, ao perto a Morte é um rio sem nome, é água sem sabor. Fétido cheiro.
Só a música trava a Morte, só ela a enfrenta como quem despe amantes no baloiço do Amor.
Há uma Morte tirana, de cor rubra, inóspita e incandescente, é a Morte interior que alberga um abandonado, um rejeitado e faz dele um número cuja identificação é a assinatura do nome, com a ânsia a peito aberto (rasgado) de quem apela propriedade.

A Morte expropria-nos, leva-nos a vaidade, retira-nos o interior e o exterior, faz de nós um corpo que rápido será pó. Mas lenta, sanguinolenta e agressiva é a Morte interior, Morte sem cor, de um abandonado.

sexta-feira, novembro 11, 2011

Frios de Outono

(Klimt)
Madrinha
quando te sinto em mim sou todos os afluentes de mar

Um sino toca. Ao longe não se avista uma gaivota. Há um manto de pássaros dispersos e desalinhados sob os fios de alta tensão, há tanto tempo esperam partir. Ainda não é hora.
De que são feitas as horas? E os espaços entre as horas?
Um sino toca e não sei quem outorgou esta sina, não sei quem puniu Erínia ou feriu os amantes, não sei quem levou a esperança para o outro lado do mundo, que eu não sei se existe; não saberei nunca porque parte tudo aquilo que faz do peito um albergue pequeno, porque partem pessoas que nos embalam como bálsamo e nos perfumam com dedos infinitos de sentir.
Um sino toca. Avista-se um padre. Chove. Chove dentro e fora deste albergue chamado peito. Alguém muda a cor do céu e as gaivotas fogem do mar. Alguém as avista em terra. Ninguém confirma.
Nada. Vazio. Sombra.
Um hospital cheio de velhos como farrapos podres, em vésperas de morrer. O sino avisa. As gaivotas dele não se abeiram e no coração despem-se um a um, todos os bocados humanos quando nos cruzamos com o olhar vago de um abandonado.
Um sino toca e ninguém ouve. Há tanto barulho lá fora, uns porque um casaco não lhes basta para cobrir a pele, outros porque o pão de ontem já não serve e poucos, tão poucos, quase ouvem o som de um sino que trazem dentro de si e nunca souberam. Vai-lhes ditando a sorte, o fado, o destino, essa linha descosida ou o que demais se apelide vida e muitos, são tantos, os que deixam morrer os sons de amor e tapam os ouvidos aos sons que todos deveríamos ouvir.
Um sino tocou. Voou, lenta, uma gaivota sob o teu telhado esta noite e no teu peito a certeza de que os dias não voltam, que as flores murcham e que, por vezes nesses telhados de cristal a que chamas casa, habitam, lado a lado, contigo, todos os pertences, todos os nomes.
Um sino tocou? Avistaste um padre? Choveu? Amanhã um dia novo nasce, aproveita a chuva de hoje e não temas molhar os pés no frio do Outono. Muitos permanecerão em ti como gotas de um fruto suculento, Vida, outros mostrar-te-ão velhos amontoados nos hospitais mas que em ti permaneça sempre a sombra do fruto que te habita.