Da Dor.
Aos que sentem dor.
Um dia desejei ser o castelo nas mãos de alguém: ninguém pode ter nas mãos um castelo - só no coração. Mesmo assim: nem no coração o fui.
Enfrentado mais um medo: uma visita nocturna, ao cemitério, feita há instantes. Depois de visitar o amor da minha vida: a minha madrinha - recém falecida. Tenho feito muitas coisas estranhas ultimamente: encontro-me.
Decidi encerrar este blogue.
Sem, porém, deixar as letras: aparecerei num lugar diferente - com outro eu: morador em mim. Agradeço a tantos nomes que por aqui passaram e quiseram saber sobre mim: tantos poderia enunciar - não o farei.
Deixo-vos um texto diferente: da dor. Há dor em mim: tanta. Só a dor me ajuda a crescer. Dor cada vez mais intensa – “quem assiste à decadência de quem ama: faz da decadência do outro, a sua também”. Dor: assistir à podridão do corpo, aos cheiros nauseabundos - ainda que naturais das escaras- do tio-avô, às incapacidades de urinar - com a ajuda das nefrostomias e urostomias- artificiais e exigentes: se não forem despejados os sacos colectores de urina: as escaras nas costas agravam e o penso da urostomia descola. Dor: na alimentação por sonda gástrica: se não injectar alimentos, o tio-avô não vive. Dor: ver a sensação de fome no olhar do tio-avô e saber que os alimentos devem ser ligeiros, específicos e administrados com água. Dor: na sonda quando entope. Dor: quando os enfermeiros mostram uma anestesia à própria dor e não executam o trabalho com eficácia. Dor: quando corro o dia todo para conseguir ter duas horas para o meu eu. Dor: sentir que sou útil - ajudando os outros, esquecendo-me do eu. Dor: quando o cateter do tio-avô se desprende e exige um internamento no hospital. Dor: no olhar do tio-avô - olhar cego. Dor na boca do tio-avô: perdeu a fala. Dor: ao trocar as fraldas: constatar que somos nada. Dor: pelo nada que os outros são - desligam-se dos tios-avós: "sentem medo e falta de coragem em ver"- dizem. Mas, ver o quê? O que seremos um dia: a dor que acumulamos desde o nascer? Dor: por não ter só um mas, dois acamados: a tia-avó. Dor: jamais os conseguirei abandonar. Gostava: não consigo. Não me sei dessa forma: libertadora - seria! Dor: a falta de lucidez da tia-avó que não reconhece o meu eu. Nem se lembra do meu nome! Dor: pela cegueira da tia-avó. Uma cegueira desde o nascimento. Há tanta dor em mim. Para além dos sonhos de uma papoila, existe dor: muita dor. Anónima dor, sem forma: prolongada no tempo. Disforme dor – com tantos rostos e nomes. Há tanta dor em mim como há Amor. Não quero mais dor. Dor: sentir a dor. Reconhecer a dor. Fazer da vida: dor - sentida decadência dos outros em nós. Nem só de Amor vivem as Almas: também de dor.
Há em mim tanta dor. Tão grande. Imensa. Intensa. Infinita: dor.
Aqui fica o meu agradecimento ao leitor. A promessa de o revisitar num outro lugar: sem escrever nunca respiro: não sou.